terça-feira, novembro 22, 2005

Verso e reverso


Adriana Varejão no CCB

Do Manifesto Antropófago, à carne tagarela do herói Macunaíma, de Mário de Andrade, passando pelos índios canibais de Portinari ou pelos matadouros de Miguel Rio Branco, a carne é uma presença insinuante na cultura brasileira.
Adriana Varejão, de quem já se viu uma mais pequena exposição em Lisboa (Museu da Cidade, 1998), é um dos mais interessantes exemplos recentes desta sensibilidade marcada em partes iguais pela violência da colonização, pelo esplendor teatral do barroco ou por uma mítica visão de um Brasil índio originário que não cessa de se auto-dissecar.
Brasileiríssima na vivência dessas ambiguidades, mas cosmopolita e contemporânea no espectro das suas referências, Adriana Varejão pratica uma arte, simultaneamente, antropológica e teatral que tenta, ao mesmo tempo, olhar o todo e dar-se à proximidade da pele.
No seu trabalho, difícil de classificar disciplinarmente, a carne, o sangue e sobretudo a pele enquanto lugar que une ou divide interior e exterior, revelado e oculto, ganham com frequência uma condição metafórica ou transformam-se em imagem forte de uma cultura que traz a violência e o sacrifício inscritos na matriz.
Talvez por isso, o seu horizonte estético seja o de uma beleza sanguínea, capaz de sobrepor erotismo, sublime e morte que, em vez de se apresentarem como elementos contraditórios, se tornam interdependentes.
Logo no título - «Câmara de Ecos» - a exposição produzida pela Fundação Cartier e pelo CCB, que chega a Lisboa algo transformada, mostra as várias encarnações (e a palavra aqui é rigorosa) desse jogo de ressonâncias.
Estão lá algumas das pinturas inspiradas nas figuras de convite que fazem conviver a estética do barroco português com o canibalismo e as violências suas contemporâneas, mas também um gigantesco painel («Celacanto provoca maremoto», 2004) de igual aparência azulejar onde certos elementos surgem mal colocados como se o lastro histórico e iconográfico que eles transportam se transformasse numa abstracção ilegível ou reformulada de acordo com uma mundividência que já não entende os seus códigos originais. Entre as obras que revelam outras facetas do trabalho de VareVarejão encontram-se as «Saunas», pinturas a óleo de grande dimensão e pequenos desenhos a lápis que mimam o interior vazio desses espaços forrados pelos contemporâneos azulejos industriais. Varejão recupera a banalidade destes lugares funcionais para estabelecer verdadeiros teatros de luz, erguidos sobre jogos de perspectiva, quase fotográficos. Na verdade, é o mesmo inquérito aos espaços e imagens que vimos anteriormente projectados sobre o tempo da colonização, tentando ler na arquitectura (aqui são quase casulos) uma sensibilidade menos evidente da arquitectura contemporânea. Noutras obras, Varejão faz propositadas referências à arte internacional e a uma evidente afinidade electiva. As pinturas da série «Parede com incisões à la Fontana», de 2002, lembram as incisões sobre a tela do artista italiano, mas são deslocadas da abstracção para o campo dos objectos reais como cortes numa parede carnívora. Essa atracção por um real teatralizável, redobra em ênfase nas obras mais evidentemente escultóricas. «Linda do Rosário» e «Linda da lapa», ambas de 2004, transportam rumores de histórias (como quase sempre acontece com Varejão), nestes casos, o desabamento de um bordel numa favela onde um casal fazia amor, ou o padrão dos azulejos de um famoso restaurante carioca. Essas inscrições no tecido urbano trazem igualmente a ideia de escultura da pura especulação formal para um registo repleto de ecos vivenciais ou de acumulações de relatos e narrativas ainda que seja através da forma e da mistura conflitual dos seus elementos que estas se nos revelam. Esse processo salva-a da retórica e de um culturalismo ostensivo. A experiência da identidade é antes aqui, a experiência cumulativa da vida e da história.
No jogo permanente entre interior e exterior, entre o verso e o reverso do corpo, da história, da linguagem e dos símbolos, a arte de Varejão transforma-se assim numa plataforma de coisas lactentes onde os contrários se debatem e acasalam permanentemente. Em todos os casos, temos sempre o barroco, não como época historicamente delimitada, mas como sensibilidade estética duradoura - tão presente em Aleijadinho como em Cronenberg - a partir da qual procede a uma intensificação fantástica do real. Celso Martins, in Expresso.

1 Comments:

Blogger José Pires F. said...

Os meus agradecimentos por este excelente texto.
Bem-haja.

10:14 da tarde  

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