domingo, março 19, 2006

Por oportunidades condignas (ou o CPE- Contacto com o Primeiro Embuste)

Um milhão e meio de cidadãos saiu ontem às ruas, em França, culminando uma semana de intensos protestos e mostrando onde está o centro cívico da Europa (os liberais empertigados gostam de se arvorar em campeões da sociedade civil, mas quando ela se manifesta, gritam logo «Deus nos acuda», ai que vândalos, credo, já não se pode ter sossego).
A mola destes protestos está na proposta oficial do CPE (Contrato Primeiro Emprego), que possibilita o despedimento sem fundamento e durante 2 anos de jovens até aos 26 anos. Com o CPE legitima-se uma sociedade dual, não solidária, assente na completa precarização laboral das novas gerações, na degradação do factor trabalho (reforço da lógica do baixo custo, aumento da flexibilidade laboral, funcional, etc.) e na permissão da discricionaridade e arbitrariedade patronais (e, tb., dos colegas, que verão os novatos como funcionários de 2.ª, sem estatuto). É um retorno ao pior da cidade grega, das hierarquias segregadoras (cidadãos; homens até 35 anos; mulheres; escravos; forasteiros), em que apenas o 1.º grupo tinha direito à cidadania (politeia).
A afronta social patente neste cavar premeditado da fractura geracional foi tão evidente que impulsionou um amplo movimento, trazendo à memória de todos (mesmo à dos detractores de serviço) o Maio de 68. Desde logo, por via das afinidades mais visíveis: 1) contestação nacional com visibilidade internacional; 2) estudantes universitários como grupo inicial liderante, com gradual alastramento a outros grupos sociais (no operariado, classes médias, estudantes liceais, etc.); 3) espontaneidade da revolta; 4) forte desconfiança face aos partidos e aos sindicatos.
É verdade que em 1968 o desemprego não era um problema central, mas, mutatis mutandis, é o mesmo quadro de questionamento social e cívico, tendo implícitas 4 dimensões: 1) recusa do primado mercantilista; 2) debate sobre o interesse público (antes, as questões do capitalismo e da guerra, agora a questão das políticas sociais, do emprego e da solidariedade intergeracional); 3) crítica a uma sociedade centrada no consumismo, na qual as novas gerações são vistas como meros clientes descartáveis; 4) recusa do fechamento do espaço público.
Quanto aos habituées de sofá, aos detractores revanchistas ou despeitados, já se lhes conhece o jeito: denegrir para desvalorizar qualquer tentativa de mudança ou de reforma político-sociais. Faz parte do filme, são os figurões de serviço. Foi assim com todas as tentativas de questionamento cívico-social, incluindo com o Maio de 68. Quem pisa não quer que se saiba, por isso diz «chiu, pouco barulho». Sossego. Ordem. Então e o respeitinho?
Há demagogia quando se diz que este tipo de actuação da nova geração duma alegada «classe média estatizante» é o culpado pelos problemas dos guetos suburbanos (e pelos motins de 2005). Os responsáveis são outros: o avanço dum capitalismo cada vez mais obcecado com o lucro imediato, desregulado e sem preocupação social, a demissão dos sucessivos governos face à questão, a cegueira do patronato face à formação profissional e à aposta internacional num mercado com menos dumping social e 'esquemas', a fixação dos sindicatos nos sectores já protegidos, a desvalorização da questão do emprego jovem pelos partidos.
Uma agenda progressista de fomento do emprego deverá passar pelo seguinte: 1) uma oportunidade condigna de 1.º trabalho para todos (com regalias sociais mínimas e alguma estabilidade temporal e geográfica, talvez 5 anos, mas com avaliação a meio e definição de funções e objectivos); 2) redução das assimetrias actuais na carreira profissional entre quem começa e quem meia/finda (o fosso salarial e de regalias atinge o cúmulo no caso da classe docente em Portugal); 3) proibição da acumulação de empregos por pessoas pagas no sector público, que por cá raia o indecoroso (vd. ex. dos turboprofessores, mas tb. dos deputados, etc.); 4) reunião do máximo de recursos para esse fim, através do combate redobrado à fraude e evasão fiscais, aumento de impostos aos lucros chorudos dos bancos (em tempo de aperto de cinto todos devem pagar a factura, não é?), maior controle das contas e empreitadas públicas, mais cortes nas mordomias e benesses de certos grupos hiperprivilegiados.
Não será mais correcto isto do que simplesmente propor fezada no mercado e, nas situações maçadoras, bordoada neles?
Nb: o mapa em baixo é das manifs de 16-3 (imagens AFP, in Le Monde).

3 Comments:

Blogger Daniel Melo said...

Obrigado, Sr. Dr., limito-me humildemente a seguir as suas pisadas (nem imaginas a odisseia que foi esta posta).
Um bom dia do pai para ti!

2:03 da tarde  
Blogger Daniel Melo said...

Caro Hugo Mendes:
no respeitante ao seu 1.º comentário, receio bem que me tenha treslido. Não me parece que tenha simplificado as coisas, não só contextualizei o tipo de acção colectiva como indiquei todos os actores responsáveis (sindicatos, patrões, etc) pelo impasse relativamente àquilo que deixei claro ser uma questão central actual: o emprego.
Ademais, elenquei um conjunto de propostas para uma política de emprego inclusiva e solidária. Esta, se for reler bem o meu texto, passa por cortar em mordomias e benesses de privilegiados, por mexer na máquina fiscal, por contratos individuais de trabalho, avaliação séria do desempenho, etc.
Em suma, o que Timothy B. Smith diz em parte eu tb. o disse, embora disconcorde com algumas das suas propostas (alinhamento com sector privado só se face a idênticas habilitações, objectivos e exigência, e se não for para uma lógica de baixos salários, despedimentos sem justa causa, etc.). O seu post parece-me bem, avança precisamente no sentido para que tentei colaborar, com pontuais divergências saudáveis, claro. Ainda bem que tb. se esforçou por dar soluções, o modelo da bojarda pró ar que domina parte da opinião é inútil.
Por isso, o seu 1.º comentário talvez tenha sido um equívoco ou uma precipitação.
Dito isto, há outro aspecto relevante esquecido: para além do fosso geracional, nota-se na sociedade má qualidade, prepotência e arbitrariedade das chefias, e é daí que vem grande parte da insatisfação e revolta dos jovens (e velhos) qualificados, com vontade de trabalhar e que não têm oportunidades para mostrar o que valem. Não será a sua atitude, então, justificável?
Não sei se me faço entender, mas se quiser eu posso desenvolver mais esta questão, pegando, por ex., na função pública.

12:45 da manhã  
Blogger Daniel Melo said...

Caro Hugo Mendes,
concordo inteiramente com o seu último comentário, quando diz que pelas iniquidades do sistema pagam os mais vulneráveis.
Eu tb. sou muito crítico da atitude dos sindicatos e da esquerda conservadora perante a magna questão do emprego, que deve ser mais reflectida criticamente noutras entradas.
A agenda progressista que proponho pensei que fosse lida por todos em chave reformista, era esse o sentido.
Folgo em saber que no essencial concordamos.
Ainda ontem (3.ª) saiu um artigo de Jacques Attali no Le Monde dando outra contribuição de relevo.
Por tudo isto, desafio-o a regressarmos ao assunto, com novos dados e aprofundamentos.

1:47 da manhã  

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