sábado, agosto 12, 2006

Qing-bu-liang: uma sopa revitalizante em tempos de depressão

Todos os antropólogos têm o seu livro de receitas. Eis uma das primeiras a entrar no meu quando comecei a fazer trabalho de campo no Sudeste da China há quase dez anos atrás. Trata-se de uma pequena amostra do génio culinário do povo cantonense.
Qing-bu-liang (清補涼) é o nome de uma sopa cantonense muito conhecida em toda a China cujos principais ingredientes incluem uma combinação especial de ervas tradicionais chinesas e um pouco de carne de porco (esta última pode ser substituída, no caso dos vegetarianos, por outros ingredientes verdes). A expressão qing-bu-liang é a transcrição fonética em mandarim (a língua oficial chinesa) do nome original desta sopa na língua cantonense: ching-bou-leuhng. Este nome pode parecer muito complicado mas o seu significado literal não podia ser mais simples e revelador. É que ching-bou-leuhng quer dizer: ‘limpo, nutrido e fresco’ (o masculino aqui é universal) e são precisamente esses, como veremos, os efeitos desta sopa mágica no nosso corpo.
Mas antes de passar para as instruções culinárias propriamente ditas, sinto que tenho de vos dar um pouco de tagarela 'sino-antropológica' (eu sei, a palavra é complicada) a propósito desta sopa.
Primeiro que tudo, devo notar que na língua cantonense não se diz “comer sopa” mas “beber sopa” pelo que se quiser mesmo “virar nativo” como um antropólogo não diga que vai “comer uma qing-bu-liang” mas que vai “beber uma qing-bu-liang”. Julgo que este é definitivamente um dos casos em que “virar nativo” é também “virar chique”.
A verdade é que as coisas nem sempre são assim. À primeira vista, poderá parecer bem difícil de perceber o porquê desta preferência uma vez que um dos efeitos fisiológicos mais imediatos desta sopa é precisamente o aumento da transpiração. A explicação mais rápida deste fenómeno aparentemente insensato poderá ser encontrada em manuais de medicina tradicional chinesa que nos recordam que é precisamente durante o verão que os nossos corpos mais precisam de transpirar. Isto porque eles estão sujeitos a um clima muito quente e húmido (o Sudeste da China é subtropical) pelo que estão sempre a acumular aquilo que os médicos chamam sap-yiht (濕熱), isto é, uma espécie de ‘calor húmido corporal’ nada saudável que é preciso eliminar. E é precisamente isso que a qing-bu-liang faz, por isso se diz que ela é capaz de limpar, refrescar e fortalecer os nossos corpos.
Noto no entanto que, ao contrário do que ditam os costumes dos cantoneses, eu prefiro beber esta sopa durante o Inverno ou durante a Primavera (pelo menos quando me encontro a residir em Portugal). Parece-me bem mais adequado ao clima temperado desta parte ocidental da Europa. É claro que é livre de experimentar esta sopa na altura do ano que bem entender.
Existem boas razões - para além das suas virtudes médicas e do seu aroma e sabor deliciosos - para a fazer já nesta Primavera. Trata-se afinal de contas de uma receita milenária, uma receita que remonta pelo menos à dinastia Tang, há mais de 1000 anos atrás quando Portugal ainda nem sequer existia no mapa. Isto quer dizer que quando beber qing-bu-liang estará a beber também um pouco dessa sabedoria antiga. Mas existe ainda uma outra boa razão para arregaçar as mangas para gozar o prazer desta sopa milenária. É que ela não é assim tão difícil de cozinhar como os complicados caracteres chineses nos levam sempre a pensar sobre tudo o que vem do Oriente. O que é mesmo difícil é cozinhá-la na perfeição. Mas isso é outra história.
De qualquer das maneiras, julgo que não tem nada a perder. Pelo contrário, se for bem sucedido, poderá ter dado um passo importante em direcção à 'sobrevivência'. Não tenha dúvidas, estará definitivamente mais bem preparado para enfrentar os complicados desafios destes tempos de depressão contemporâneos. Pense só, mais ‘limpo’, mais ‘nutrido’ e mais ‘fresco’.

Eis as instruções básicas.
Preparações iniciais:
(1) Vá ao supermercado chinês do seu bairro e peça um pacote qing-bu-liang (se tiver dificuldades em fazer-se entender, mostre os caracteres chineses deste blogue). É pouco provável que encontre um supermercado chinês que não venda estes pacotes. De qualquer das maneiras, se isso acontecer, lembre-se que o facto de ter encontrado um dos piores supermercados chineses do mundo só pode querer dizer que teve muito azar. Não se desencoraje!
(2) No caso de querer verificar os conteúdos do pacote para ter a certeza que está a comprar a coisa certa, eis a lista das ervas mais frequentemente usadas nesta sopa: cevada chinesa, inhame selvagem chinês, sementes de euryale, milho, sementes de lótus, sêlo de Salomão e Longan. Se acha que estes nomes em português são complicados, não está sozinho. Eu asseguro-lhe que eles não são menos complicados em chinês.
(3) Vá ao talho para a carne de porco. A melhor parte do porco são os pés. Julgo que em Portugal não terá problemas em encontrar esta parte do porco porque, aqui como na China, é bastante apreciada. Se for vegetariano, salte esta etapa.
(4) Compre cenouras e cogumelos. Note que esta parte não integra a receita clássica. As cenouras adicionarão um gosto algo doce à sopa. A sua textura dura e fibrosa é também boa para o longo tempo da cozedura. O mesmo se pode dizer da textura de alguns tipos de cogumelos.
Dosagem dos ingredientes para uma panela de sopa:
1 pacote Qing-Bu-Liang;
1 pacote Carne de Porco (Pés de Porco);
500g Cenouras (Opção vegetariana);
2 Cogumelos (Opcional/Vegetariano) – 100g.
Instruções de cozedura:
(1) Lave os ingredientes do pacote qing-bu-liang com um coador
(2) Barbeie os pés do porco e escalpe os ossos durante cerca de 2 mins. para limpar o sangue e a gordura
(3) Entorne 8 a 10 tigelas de água (tigelas chinesas de arroz) para uma grande panela, adicione o porco e as ervas e comece a cozinhar a fogo forte até começar a cozer
(4) Corte as cenouras/cogumelos em partes iguais e coloque-as dentro da panela
(5) Coza a fogo brando durante 2 a 3 horas – muitos cantoneses chamam a este fogo brando o mahn-fo (文火), ou o “fogo letrado ou cavalheiro”. Poderá ser giro dizer isso aos seus amigos.
(6) Adicione sal ao seu gosto (deverá fazê-lo durante a cozedura) e, pronto, já está!
Boa sorte!
Gonçalo Duro dos Santos
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