segunda-feira, outubro 30, 2006

Avenida 5 de Outubro

A 5 de Outubro não calhou, mas não queria deixar passar a evocação da I República antes do ocaso deste mês. A I República é um dos períodos da História contemporânea mais fascinantes e está a necessitar de revisitações críticas que superem os julgamentos enviesados para uso na peleja ideológica actual.
Por isso, aproveito para convocar uma passagem evocativa na 1.ª novela de Manuel da Silva Ramos. Diz assim:
"O nascimento da república. O meu avô está lá. De pé ao cimo da avenida. Os olhos abertos para o futuro. Está de pé e treme no lado ocidental da barricada, construída por ele (por todos nós) com bancos arrancados da rua. Cai-lhe um chapéu para a testa ancestral. Cai-lhe um bigode para os lábios históricos. Ao fundo da espingarda começam os seus olhos. Graves, cor de maçã. Em Trieste, ao mesmo tempo, sem nada saber, James Joyce escreve «Dubliners», num pequeno café, cuja primeira edição há-de ser queimada por um desconhecido. [..]
E meu avô, do fundo desta página, canta Cantiga dum pé descalço com uma lágrima actual no rosto:
«Bati-me lá na Rotunda
Herói eles me chamaram
Pouco tempo decorrido
Nesta prisão m'encerraram.»
[..] E o meu avô vai sentar-se mais longe, mais perto do seu tempo, a tremer de fome, espingarda ao lado, olhar contra a tarde portuguesa.
Avô, minha aventura lírica. Meu movimento".
(in Os três seios de Novélia, 2.ª ed., Fenda, 1996, p. 26 e 29)
Nb: imagem do Arq.º Fot.º da CML.
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