terça-feira, março 21, 2006

Tributo perpétuo a Fernando Gil (1937-2006)

Agradecimento em vida
(excerto de palestra da mãe, Lourenço Marques, 11.09.1959)
"Vivi alguns anos da minha adolescência dentro dos recintos das chamadas «Companhias Indígenas» e a própria disciplina militar que observava, a continência do impedido sempre mantido à distância, foram mais tarde seguidas pela observação do respeito que os nativos do interior têm ainda pelo administrador de circunscrição.
Disso se ressentiu naturalmente, o meu comportamento para com eles. Embora procurando ser justa, algumas vezes tive, decerto, exigências a mais e compreensão a menos.
Nasceram-me depois dois filhos que, pelas dificuldades de educação que há dez anos havia ainda no interior, vieram para Lourenço Marques tirar o Curso do Liceu.
De regresso a casa, durante as férias, comecei a reparar nas suas reacções quando uma palavra mais dura da nossa parte – minha ou do pai – chamava a atenção do pessoal que nos servia.
Se observava então os meus filhos, sentia os seus olhos pousados em nós como uma muda censura.
Reagiam até quando essa aspereza era em seu proveito, ou motivada por qualquer falta dos criados para com eles próprios.
Tinham lido, iam crescendo, e simultaneamente, criando a consciência de condições e desigualdades que até então eu aceitara como decorrentes da fatalidade natural das coisas, mas contra as quais eles, com a generosidade própria da adolescência, instintivamente se rebelavam.
Chegados á juventude, mais e mais frequente era entre nós a troca de impressões sobre problemas e assuntos relacionados com coisas de África. E deu-se então uma simbiose que nem sempre se estabelece entre pais e filhos: aos princípios de dignidade, de honestidade e de justiça que nós, como todos os pais, procurávamos incutir-lhes, respondiam eles trazendo a lume problemas frequentemente relacionados com os indígenas, que submetiam à nossa apreciação.
Mais tarde procurei ler, aprofundar esses problemas, acertar a minha conduta pela bitola que os meus filhos, inconscientemente, me tinham apontado. E hoje não me custa confessar que a eles devo parte do despertar da consciência para a meditação de flagrantes injustiças, de enormes desigualdades que devemos a todo o transe procurar aplanar ou abolir [...]
Vindo poucos anos depois a conhecer colegas seus, verifiquei com alegria que os meus filhos não constituíam excepção [...]
Era comum o sentimento de indignada repulsa por tudo o que significasse humilhação ou menosprezo da pessoa humana, onde quer que eles se manifestassem."

Irene Gil, Alguns aspectos das nossas relações com os indígenas, colecção “Anambique”, n.º 4, Lourenço Marques, Associação dos Naturais de Moçambique, [1959], p. 20-21.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Do livro "Prosas Alegres e Não", 1973, de Berta Henriques Brás, transcrevemos uma breve referência a Fernando Gil na crónica "Os Leaders", que atestam a precocidade do jovem setanista do Liceu Salazar, então com quinze anos: "No meu 7º ano do liceu tive um colega prodígio, com uma cultura acima de todas as médias, revelada através das discussões com o professor de Literatura Portuguesa sobre literatura ou filosofia, mantidas duma forma segura e vibrante, que me punha, na minha humildade de debutante no mundo mirífico do saber, extática e embevecida. ......
... Em certos momentos contudo, menos propensos à admiração e mais dados à reflexão, torno-me um pouco macambúzia e triste, ao pensar na extraordinária diferença entre a mentalidade daquele rapazinho de quinze anos - o Gil - que no seu 7º ano discutia, vibrante e seguro, com os seus professores, e os adultos já formados e portanto com o dever de reconhecerem o "quod nihil scitur" da limitada natureza humana, mas apesar disso apenas se esmerando numa autocontemplação e auto-embevecimento ....

7:05 da tarde  

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