Modernidade, resistências e ambiguidades
Aproveito a polémica sobre a natureza do salazarismo (bloguiticamente detonada aqui e regada na respectiva cx. de comentários e aqui), para introduzir um historiador italiano, Stefano Cavazza, dado o seu estimulante contributo para repensar estas questões da natureza ideológica dos regimes da vaga fascista (anos 20/30).
Tendo por pano de fundo o reequacionar do confronto com o tipo extremo representado no nazismo e a propósito das relações entretecidas entre folclorismo, regionalismo cultural, nacionalismo e modernização sob o vinténio fascista, Cavazza diz-nos o seguinte:
"Nos últimos anos a historiografia anglosaxónica propôs o modelo de «modernismo reaccionário» (Jeffrey Herf) para interpretar o caso nazi. Segundo tal modelo, a promoção do desenvolvimento tecnológico inseria-se numa tradição nacionalista e irracionalista fundada na oposição entre Kultur e Zivilisation, e associava-se à reproposição de valores e formas de vida tradicionais. Trata-se certamente duma interpretação pensada a partir da experiência histórica alemã e sujeita a uma verificação por ora apenas parcial mesmo naquela área; contudo, ainda que com muitas cautelas, ela parece-me proponível mesmo noutros contextos nacionais. Da pesquisa feita sobre o folclorismo fascista surgiram diversos elementos com afinidades a um registo deste tipo. Em Itália, na génese do amor pelo folclore estavam a tensão rumo ao passado e aqueloutra rumo ao sistema de valores pré-industriais que se punham em conflito aberto com a evolução coeva dos valores e dos costumes. Esta tensão dialética atravessava até o bloco de consenso [...] e as próprias instituições do regime. [...] o folclore podia bem servir para tentar realizar o desenvolvimento tecnológico, indispensável a uma política de potência no seio dum sistema de valores prémoderno. O folclorismo fascista, a reboque da ideologia da romanidade e dum culto da tradição orientado rumo à latinidade, foi funcional para esta tentativa, fruto bem entendido não dum projecto coerentemente pensado e desenvolvido, mas sim duma interacção de impulsos distintos. [...] A modernização era realmente um processo em curso e, face aos conflitos que ela produzia, as classes dirigentes liberais preferiram juntar-se ao fascismo e a uma tentativa de recompactamento da nação ao qual mesmo o folclorismo deu o seu contributo" (Piccole patrie, Bolonha, Il Mulino, 1997, p.251/2).
Ora, o salazarismo tem afinidades com este magma cultural-ideológico, mas não terá ido tão longe na reformatação dos modelos culturais, daí se poder usar ainda com mais propriedade uma definição como a da resistência à modernidade e de como essa resistência teve consequências nefastas e duradoiras ao nível social, cultural, institucional e mental. Estamos aqui a falar numa dimensão cultural-ideológica, e não económica ou sócio-económica, das elites, correntes e seus interesses. Um fascismo sem movimento de massas (M. Lucena), uma modernização incipiente e desequilibrada sem modernidade cultural e cívica: esta afigura-se-me uma estimulante via a explorar.
É outra perspectiva, uma possibilidade entreaberta para repensar o salazarismo (ou o franquismo, etc.), sob pena de cairmos em balanços quantitativistas escorregadios e relativizadores (crescimento económico, indicadores sócio-económicos brutos e descontextualizados, etc.), ou de estarmos a falar sempre dos mesmos domínios, o económico e o político mais formalistas.
Tomando a deixa de Carlos Leone, algumas das minhas pesquisas vão tb. neste sentido e estão tb. aí disponíveis, em livros (Salazarismo e cultura popular, 2001; A leitura pública no Portugal contemporâneo, 2004) e artigos vários, para escrutínio, apropriação e confronto.
Neste sentido, este tipo de debates não tem estações, vai-se fazendo, à medida das possibilidades de cada um. A blogosfera tem esse potencial: a da maior interactividade, do maior espaço de reflexividade, aprofundamento e pluralidade, da menor pressão do tempo e a da mais fácil remissão e recuperação de textos antigos, ia a dizer arquivados.
9 Comments:
Não conhecia, parece mito interessante. Modernismo reaccionário lembra-me o «futurismo do passado» que Hermínio Martins refere (sem indicar o autor da expressão) para caracterizar o integralismo.
Também me pareceque aquela das férias dos comentadores no Amigo do Povo era um pouco insólita...
A Bem da Nação
CL
Bom, ao menos já são 4 que leram este estendal, valha-nos isso.
Há quem diga que isto agora tem que ser tudo postado na 1,2,3, enfim, eu cá continuo no velhinho almofariz. Sinto-me bem acompanhado: os bons debates com que deparo são em torno de txs. com fôlego e argumentação.
Tb. aprecio o H. Martins, outro clássico estimulante.
Saúde e Democracia,
DM
É muito bom que encontremos conceitos para pensar as contradições, se mais não fosse porque a maior parte dos regimes concretos (como as pessoas concretas?) são feitos de contradições e ambiguidades pouco consentâneas com os contextos mais clássicos da história e análise política. Obrigada pela dica, Daniel.
era "conceitos mais clássicos", claro
Caro Daniel e Cleone,
Ontem não deu mesmo para frequentar a blogosfera. Este contributo do Daniel é muito interessante e o conceito de «modernismo reaccionário» estimulante. Mesmo quando estudamos um grupo como o «Orpheu» há pormenores que nos surpreendem. Por exemplo, a madrasta de Mário de Sá-Carneiro chocava os seus amigos vanguardistas por passear sozinha com o seu cão na Avenida da Liberdade e era conhecida como a «Maria do cão».
Uma questão importante, com consequências para o debate em torno do Estado Novo, é se uma cultura reaccionária pode coexistir com a modernidade tecnológica. Muitos fundamentalistas islâmicos actualmente acreditam que sim. No nazismo coexiste o delírio cultural que até entrava por um certo esoterismo com o vanguardismo tecnológico.
O Estado Novo deu maior margem de manobra aos engenheiros (embora lhes impusesse limites) do que aos escritores.
Um debate destes - sobre o salazarismo foi ou não um fascismo - já merece uma reunião acdémica a acabar na publicação de um pequeno livro ou de um número temático de uma revista como a penélope de boa memória, a ler história, a análise social, ou aquela de Coimbra cujo nome agora se me escapa - qualquer coisa de história das ideias? No livro, ou na revista, reunir-se-iam, naturalmente, os papers apresentados e discutidos.
De qualquer modo, e não querendo por muito a foice em seara alheia, devo dizer que esta história da discussão fascismo em torno dos conceitos de modernismo, modernidade, tradição, etc., não me convence. Os conceitos são os conceitos, a ideologia, a ideologia - muito importante, por acaso - e a história é a história. E, sinceramente, esta que me interessa. Por exemplo, desvalorizar, como parece que desvaloriza o Daniel, a questão do crecimento e do desenvolvimento económico português - metropolitano e "ultramarino" - no pós-guerra é uma jogada arriscada. Por outro lado, e no debate que anda pelo amigo do povo, aqui da fuga para a vitória e no esplanar, tem-se ignorado, entre outros, um acontecimento muito importante para o destino a curto (sidonismo) e médio prazo (ditadura militar) da primeira república portuguesa: a Grande Guerra e a participação portuguesa na dita nos termos em que foi decidida.
Passem todos muito bem
Vamos cá ver; é claro que a vaga fascista e/ou autoritária tb. teve 1 programa social (corporativo) e económico (crescimento controlado oficialmente, intervenção estatal, etc.). E que há distintas fases dentro dum mesmo regime, certo.
Agora, do ponto de vista das liberdades fundamentais, da cidadania política e social, das políticas culturais, o salazarismo tem óbvias afinidades com o magma ideológico e cultural em que se inspirou; que esse mesmo quadro foi transposto para a política efectiva, não tenho dúvidas.
Ademais, esta questão, ou feixe de questões, tem sido pouco ou insuficientemente explorada na nossa academia.
Para se perceber como isto não é só uma tara cá do nosso cantinho, convoquei um historiador italiano que não só mobiliza a literatura específica alemã como a anglosaxónica, permitindo assim avançar em grandes linhas de debate.
Se a blogosfera é o sítio ideal para se fazer um debate algo maduro sobre questões deste tipo, não sei, mas foi, pelo menos, um começo, uma tentativa, qq coisa.
Um n.º de revista académica para debater estas questões? Acho mt. bem, falta alguém avançar e 1 n.º desses demoraria no mín.º 1 ano a estar cá fora; ficarmos de pousio no entretanto era castigo (ou masoquismo) forte demais.
PS: não percebi a parte sobre a Grande Guerra, para além de concordar que foi um envolvimento traumático para a sociedade lusa.
Boa noite
Acabei de postar no esplanar um link para cá, mas só para o blog, não para este post e respectiva caixa, ainda não tenho estudos para tanto.
CL
PS - Eu acho que percebi a referência à I Guerra Mundial, mas como não quero ver novos revisionismos apressadamente, espero por mais informações...
No post deste domingo (13/8), Carlos Leone refere que eu discordaria de se fazer 1 livro sobre o debate que vários bloggers/ estudiosos vêm travando na blogosfera sob o liberalismo e o fascismo.
Se criei essa imagem, foi involuntariamente, pois eu nada tenho a opor à edição de 1 livro específico. Até apoiei 1 n.º temático de revista desde que esse não se fizesse à custa do debate bloguítico. Tão-só isto.
Por isso, subscrevo estas 2 frases de Leone: 1) "o livro ou tem vida própria ou não deve existir"; 2). "E em qualquer caso não dispensa outras discussões".
Qt. ao resto do tx. de Leone, eu não sei se o liberalismo ibérico é assim tão distinto do restante, nunca tinha pensado mt. por esse prisma. Seja como for, julgo que é uma proposta mt. estimulante para se repensar as grandes linhas de cultura política, cívica e mental que perpassaram esta área nos últimos séculos.
Enviar um comentário
<< Home