Amanhã, certamente, todos iremos votar de acordo com a consciência. E claramente, há homens que fizeram mais por isso do que outros. Alguns deles estão entre os candidatos. Entre eles, no entanto, um se distingue dos demais.
Soares está para o século XX português como mais nenhum outro político do burgo. Falem do que quiserem – oposição ao Estado Novo, 25 de Abril, democratização do regime, redemocratização do regime, descolonização, entrada na CEE – da história recente do país e o seu nome é inescapável. Para o bem e para o mal, esteve lá, no núcleo do turbilhão, lutando por aquilo em que acreditava sem medo nenhum de o fazer. Não andou escondido para vir mais tarde, ao sabor da imaginação, inventar ficções de participação cívica, como faz Cavaco Silva. Em tempo de democracia não se acomodou, como Alegre, a um regime pasmado que lhe concederia vida certinha à sombra de um estatuto anti-fascista.
De Alegre recordam-se facilmente as aparições na televisão quando havia cheias em Águeda e... pouco mais. Ele lembra, no entanto, que antes da democracia propriamente dita passou tempos em Argel. Claro que sim, claro que os passou, ninguém diz que não. Não quero “diabolizar” a campanha de Alegre. Afinal, ele defende um património de valores que eu preconizaria em grande parte, sem qualquer espécie de prurido. No entanto, parece-me que a formulação de algumas questões, até de cunho auto-justificativo para a própria candidatura, não tem sido a mais feliz. Sobretudo tem sido falsa, completamente em desacordo com a realidade da sua vivência nos trinta e um anos de democracia que o país leva. Isso afasta-me dele, certamente e sobretudo porque tenho outro socialista em quem votar, que não tem de reinventar a todo o momento razões para a sua condição de candidato.
Depois há Jerónimo e Louçã. O primeiro, depositário da notável história de resistência e luta de um partido que por isso aprendi a admirar: o PCP. O outro, talentoso político sem dúvida, e, queira-se ou não, uma reserva para a esquerda nacional do futuro. Mas ambos, hoje, cumprem outra agenda, de cariz partidário, onde o exercício da Presidência não cabe. Trata-se, digamos, de uma corrida lateral.
Há portanto Soares, Alegre e Cavaco. Pragmaticamente é isto que há. Não olhando a mais nada senão à estatura política dos homens em causa, só há uma escolha possível. Nem preciso nomeá-la. Cavaco foi primeiro-ministro de Portugal durante dez anos e tem o desplante de falar do estado das coisas como se não tivesse contribuído para o mesmo. Imbuíu-se a si próprio de uma aura salvífica que sabe não comportar, e à qual não poderá minimamente corresponder. Não tem, pois, qualquer pejo em enganar os eleitores. Nem sou eu que o digo, mas sim, o absolutamente icansável e nesta matéria insuspeito, Pulido Valente.
Um dos traços essenciais pelos quais o calibre de um Presidente deve ser medido é o da participação social e política. Ora nesse aspecto, Mário Soares leva sessenta anos de vida activa. Nós sabemos o que ele pensa sobre o que mais interessa às nossas vidas. Soares é um exemplo. Inventou, teve de inventar, uma oposição ao regime antes de 74. Fê-lo contra o PCP, o então imenso Cunhal, e a extrema-esquerda, onde ruminavam tantas excrescências que hoje controlam a opinião no país, desde logo José Manuel Fernandes e José Pacheco Pereira. Soares combateu-os a todos. Fundou um Partido Socialista em 73, que inventou também praticamente sozinho. Sem peso cá dentro, procurou os socialistas europeus para esse reconhecimento. Negociou depois a descolonização da única forma que a esquerda europeia poderia aceitar, e fez bem. No período quente do nosso pós-25 de Abril, foi essencial para hoje sermos o que somos: uma democracia que aspira a melhores condições de vida, mais justiça, solidariedade e prosperidade. Soares deu-lhe, e deu-nos, horizontes, e faremos deles o que quisermos e pudermos. Assinou a nossa entrada na UE, então CEE, e mais uma vez, com esse gesto, um precioso acto para acalentar esperanças mais sólidas. Ser de esquerda, da esquerda portuguesa do último quarto de século, é estar com Soares. Mas mais, ser progressista, de esquerda, de centro ou até de direita moderada, nos últimos vinte e cinco anos, é estar com Soares. Por isto e muito mais, Cavaco e Alegre não são comparáveis. E é pouco mais o que interessa nestas eleições. O resto são questões menores, de cariz partidário, mesquinho, pequeninas, que não deveriam interferir na eleição para o mais alto cargo da magistratura da nação.
Posso especular sobre o que fará o PR depois de eleito. Mas tenho, antes disso, de avaliar o que fez para merecer o meu voto. Tenho de tentar perceber o que é, antes de mais como homem, no que acredita, como concebe a vida em democracia, como participa nela, como convive com a crítica, como se informa, que valores defende e como os expressa perante todos. Desta massa se faz, a meu ver, um PR. A todas estas questões, quer esquivando-se à maior parte delas, quer respondendo, por palavras ou por actos, de forma insatisfatória a outras tantas, Cavaco torna a minha escolha muito simples. Não tem humor, não tem poder de encaixe, não tem flexibilidade alguma, não tem historial de participação social e política que se possa medir de forma continuada (apenas alguns impulsos – um dos quais, admito, lhe agradeço), não tem estatura humanista nem cultural, é frio e distante, chegou a dizer que “nunca se engana e raramente tem dúvidas”, ou que “não lê jornais”, não se compromete com nada de forma genuína (há quem diga que é estratégia – e vivem bem com isso?, pergunto). Tudo somado, revela um desconforto relativo à vivência em democracia que não pode ser nunca, jamais, componente basilar do perfil de um PR.
O passo inseguro de Cavaco não nos pode envergonhar. Nas mais altas circunstâncias, em que um PR tem de se mover, Cavaco acanha-se. Por feitio, por insegurança, por timidez, seja lá pelo que for. Não o censuro. Ele não tem a estatura humanista e cultural que se exige a um PR. Sabe-o, e isso revela pelo menos uma coisa: clarividência em relação às suas limitações. Façam pois um favor ao país. Não votem Cavaco. E dito isto, digo mais, façam até esse favor ao próprio Cavaco.
Para terminar, cito Rui Ramos, ideólogo da «nova» direita: “Um dia far-se-á justiça a Mário Soares. Compreender-se-á então que ele foi o mais formidável e o mais bem sucedido líder que a esquerda portuguesa teve em duzentos anos de história. Muito provavelmente, a direita a que temos direito há-de ser a última a compreender isso”*.
Ora nós, que não somos de direita, já o deveríamos ter compreendido há muito. E amanhã devíamos prová-lo.
*in Ramos, Rui (2004), Outra Opinião, Ensaios de História, Lisboa, O Independente Global e Rui Ramos, p. 153.