A premência da economia política (e da questão laboral em particular) na actualidade impõe que a ela se retome, ainda mais sabendo-se que ela é fulcral numa agenda progressista.
Tal como já se exemplificou neste blogue em várias ocasiões, urge consolidar um inventário crítico e propositivo do actual estado das coisas.
Nesse sentido, cabe fixar objectivos e prazos para a actividade pública e responsabilizar os agentes pela sua observância bem como pelo cumprimento da lei e das regras estabelecidas. No capítulo da responsabilização parece consensual que o exemplo deve vir de cima, excepto para os partidos, por razões de satisfação das suas clientelas particulares.
Dito isto, falta o resto: políticas sociais e de emprego apostadas na criação de empregos condignos para todos, na valorização e protecção dos trabalhadores, num sistema redistributivo dos proventos e do risco social. De
Hugo Mendes, que hoje disse o essencial a este respeito, respigo um tiro certeiro: "
Redistribuição não é apenas 'taxar os ricos'; significa agir sobre certas categorias que vivem em situações de elevada protecção concedida pelo Estado e fazê-las ver que a manutenção da sua alta segurança gera exclusões nos mais desfavorecidos e nos mais jovens (o difícil é fazer isto sem denegrir o seu trabalho e a sua competência). A alta segurança de uns gera, indirecta mas invitavelmente, alta precaridade noutros".
Falta tb. o reconhecimento do trabalho e do mérito individuais, acabando com a pseudomentalidade igualitarista que só sabe premiar a mediocridade e o clientelismo; a celebração de contratos individuais que consagrem estes princípios bem como condições laborais condignas (alguma estabilidade temporal e geográfica, meios de trabalho, segurança e higiene laborais, etc.). Nas democracias mais consolidadas, a prática política estabelece que não bastam medidas positivas, é preciso tb. impôr mecanismos de avaliação, controlo e acompanhamento da actividade pública, além de ser aceite que um efectivo projecto reformista implica precisamente uma constante renovação dos procedimentos, corrigindo erros e imprecisões.
No nosso país, tal óptica nunca foi aplicada de modo sistemático, tendo o Estado sido capturado por interesses pessoais, corporativos e clientelares, tanto de decisores como de executores e partidos em geral. Os executores têm ficado na sombra, antes por meras razões político-partidárias, hoje (e por cá) devido ainda a uma certa cumplicidade face à ofensiva oficial de cortes orçamentais e à reforma da administração pública. Infelizmente tb. muitos destes têm culpas pela situação a que se chegou, pois só pensam nos seus interesses salariais e de carreira.
Para os mais renitentes à tese aqui vão algumas provas bem elucidativas. Em 1.º lugar, as horas extraordinárias são uma prática corrente no nosso país: p.e., em Lisboa, c. de 1/3 da massa salarial era dessa rubrica, ap. dados vindos a público no final do consulado de João Soares, e desengane-se quem pensa que a situação foi debelada, o regabofe continua, com algumas cosméticas à mistura (a propósito, lembram-se do caso do Audi do Santana Lopes que não se consegue vender em hasta pública? pois é, nem devia estar à venda, a questão é que o actual presidente, o mui respeitável e sério Carmona Rodrigues, quer ter um coche novo para ele, um régio Mercedes, daí ter que se desfazer do outro, mas com os media que temos é natural só sabermos as estórias pela metade...). Em 2.º lugar, as autarquias e parte dos institutos em Portugal estão em roda livre, sendo fracos os mecanismos de controle. Em 3.º lugar, os sindicatos consomem as suas energias em maratonas mesquinhas sobre aumentos salariais de décimas, secundarizando o essencial: um pensamento estratégico sobre objectivos e compensações adequado às conjunturas e articulado com prioridades elementares: encurtamento de assimetrias entre os de cima e os de baixo, combate ao desemprego (há muita gente em baixo a auferir salários miseráveis, em contraponto a gestores de EP's a ganhar fortunas e indemnizações indevidas), mais emprego jovem, para os imigrantes, políticas comunitárias e sociais (creches, refeitórios, transportes públicos mais eficientes, etc.). Em 4.º lugar, a acumulação de empregos entrava a contratação de novos empregados, curtocircuitando a renovação geracional, novas práticas e ideias. Em 5.º lugar, muitos dos cargos de chefia são de ordem político-partidária/ poderes fácticos, reforçando a politização e venalização da administração, bem como a redução dos padrões de qualidade (transparência, exigência, competência, mérito, etc.).
Compreende-se assim porque não há mudanças, pudera, uma grande parte (senão a maioria) vive deste estado de coisas, cada qual saca o que pode e está-se lixando para os outros. Como se podem mudar as estruturas com pessoas acomodadas sem ser impondo um compromisso que a todos comprometa?
Tb. não é de admirar que muitos no sector privado acolham de imediato qualquer medida dita de reforma do Estado, pois as regalias e despautérios nele cometidos (não generalizadas mas pouco combatidas) estão a anos-luz da austeridade e insegurança dos seus empregos. É por aqui que melhor se poderá compreender fenómenos como o de Berlusconi e a atração não só por políticas populistas como pelas neo-liberais. É que uma grande parte da esquerda recusa-se a admitir que o «povo» tb. possa ser perverso e egoísta, desvalorizando por isso a reforma da coisa pública. Vive na nostalgia do tempo das «conquistas» e não aceita negociar acordos globais que tenham em atenção os contextos conjunturais (como se as ditas «conquistas» não tivessem resultado também elas de conjunturas determinadas), quebrando assim solidariedades intergeracionais, interclassistas e intergrupais, e deixando o campo aberto ao centro e à direita.
Perante isto, só uma nova reconfiguração da paisagem política permitirá impôr uma agenda verdadeiramente progressista, inclusiva e solidária. Essa reconfiguração poderá passar por reformas dos partidos, das suas alianças (em Portugal nunca houve um governo de esquerda coligada constitucional) e/ou de grupos sociais mais dinâmicos, ou, mais simplesmente, pela capacidade de impôr a dita agenda no espaço público. Tarefa hercúlea, mas ingente. Na Escandinávia já se fez isso, em França começaram a dar-se os 1.ºs passos, esperemos.